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lunes, 27 de junio de 2011

OTRA BALSA EN EL AQUERONTE



UMA OLHADA


“O sócio capitalista aqui da firma, sempre doente em parte incerta, quis, não sei por que capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do escritório. E assim, antes de ontem, alinhamos todos, por indicação do fotógrafo alegre, contra a barreira branca suja que divide, com madeira frágil, o escritório geral do gabinete do patrão Vasques. Ao centro o mesmo Vasques; nas duas alas, numa distribuição primeiro definida, depois indefinida, de categorias, as outras almas humanas que aqui se reúnem em corpo todos os dias para pequenos fins cujo último intuito só o segredo dos Deuses conhece.

Hoje quando cheguei ao escritório, um pouco tarde, e, em verdade, esquecido já do acontecimento estático da fotografia duas vezes tirada, encontrei o Moreira, inesperadamente matutino, e um dos caixeiros de praça, debruçados rebuçadamente sobre umas coisas enegrecidas, que reconheci logo, em sobressalto, como as primeiras provas das fotografias. Eram, afinal, duas só de uma, daquela que ficara melhor.

Sofri a verdade ao vêr-me ali, porque, como é de supor, foi a mim mesmo que primeiro busquei. Nunca tive uma idéia nobre da minha presença física, mas nunca a senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão minhas conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Pareço um jesuíta frusto. A minha cara magra e inexpressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for, que a alce da maré morta das outras caras. Da maré morta, não. Há ali rostos verdadeiramente expressivos. O patrão Vasques está tal qual é — o largo rosto prazenteiro e duro, o olhar firme, o bigode rígido completando. A energia, a esperteza, do homem — afinal tão banais, e tantas vezes repetidas por tantos milhares de homens em todo o mundo — são todavia escritas naquela fotografia como num passaporte psicológico. Os dois caixeiros viajantes estão admira veis; o caixeiro de praça está bem, mas ficou quase por trás de um ombro do Moreira. E o Moreira! O meu chefe Moreira, essência da monotonia e da continuidade, está muito mais gente do que eu! Até o moço — reparo sem poder reprimir um sentimento que busco supor que não é inveja — tem uma certeza de cara, uma expressão direta que dista sorrisos do meu apagamento nulo de esfinge de papelaria.

O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma película não erra? Que certeza é esta que uma lente fria documenta? Quem sou, para que seja assim? Contudo... E o insulto do conjunto?

—''Você ficou muito bem", diz de repente o Moreira. E depois, virando-se para o caixeiro de praça, "É mesmo a carinha dele, hein?". E o caixeiro de praça concordou com uma alegria amiga que atirou para o lixo.”


Fernando Pessoa. Livro do desassossego Editora Brasiliense.