ENTRE ESTRELAS
“Onde está Deus, mesmo que não exista?
Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado
como uma carícia não propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um regaço
enorme, sem forma, espaçoso como uma noite de verão, e contudo próximo, quente,
feminino, ao pé de uma lareira qualquer... Poder ali chorar coisas impensáveis,
falências que nem sei quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes
dúvidas arrepiadas de não sei que futuro...
Uma infância nova, uma ama velha outra
vez, e um leito pequeno onde acabe por dormir, entre contos que embalam, mal
ouvidos, com uma atenção que se torna morna, de perigos que penetravam em
jovens cabelos louros como o trigo... E tudo isto muito grande, muito eterno,
definitivo para sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo triste e sonolento
da realidade última das coisas...
Um colo ou um berço ou um braço quente em
torno ao meu pescoço... Uma voz que canta baixo e parece querer fazer-me
chorar... O ruído de lume na lareira... Um calor no inverno... Um extravio
morno da minha consciência... E depois sem som, um sonho calmo num espaço
enorme, como a lua rodando entre estrelas...”
Fernando
Pessoa.
Livro do desassossego.
Editora Brasiliense.
Livro do desassossego.
Editora Brasiliense.