AS FOLHAS CAEM NO PASSEIO
«Quando ponho de parte os meus [...] e arrumo a um canto,
com um cuidado cheio de carinho — com vontade de lhes dar beijos — os meus
brinquedos, as palavras, as imagens, as frases — fico tão pequeno e inofensivo,
tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste!...
Afinal eu quem sou, quando não brinco?
Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas
da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da
Fantasia. De um pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o nome não
me dá idéia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e
choro, e faço-me uma idéia dele a quem possa amar... Mas depois penso que o não
conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez não seja nunca esse o pai da
minha alma...
Quando acabará isto tudo, estas ruas
onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as
mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me
levasse para sua casa e me desse calor e afeição... Às vezes penso isto e choro
com alegria a pensar que o posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora
e as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm
sentido nenhum... E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada,
que nenhum Amor quis para seu filho adotivo, nem nenhuma Amizade para seu
companheiro de brinquedos.
Tenho frio demais. Estou tão cansado no
meu abandono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa
que não conheci... Torna a dar-me ó Silêncio [...], a minha ama e o meu berço e
a minha canção com que eu dormia.»
Fernando Pessoa. Livro do desassossego. Editora
Brasiliense.