RUAS
E SOMBRAS
O velho sem interesse das polainas
sujas, que cruzava freqüentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo
que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da
tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque
os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei
da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu
— a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim — sim, amanhã eu também
serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com
um "o que será dele?". E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo
quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas
de uma cidade qualquer.
Fernando Pessoa.
Livro do desassossego.
Editora Brasiliense.